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Marcas humanas indicam grande população na Amazônia antiga

Marcas humanas indicam grande população na Amazônia antiga

Texto: Letícia Naísa/Revista Pesquisa Fapesp

É difícil pensar na floresta amazônica e não imaginar uma imensidão verde. Ela abriga, no entanto, muito mais do que aquilo que se vê do céu. Grandes figuras geométricas escondidas pelas copas estão sendo identificadas pela tecnologia óptica Lidar (detecção de luz e medida de distância), como mostrou artigo publicado em outubro na revista Science. Também considerada, em geral, obra de povos pré-colombianos, a terra preta de índio ganhou em setembro mais indícios de ser intencional, e não fruto do acaso, de acordo com artigo na Science Advances.

Pesquisas realizadas nas últimas três décadas indicam que o Brasil já era vastamente habitado, inclusive na região amazônica, antes da chegada dos colonizadores portugueses, em 1500. A escala dessa ocupação amazônica agora cresce, a partir do mapeamento feito com o equipamento acoplado a um drone ou a bordo de um veículo aéreo, que emite milhares de pulsos laser por segundo e, a cada pulso, calcula uma medida de distância. “É quase como uma radiografia”, explica o geógrafo Vinicius Peripato, estudante de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e primeiro autor do estudo assinado por 230 pesquisadores.

Em áreas já desmatadas na parte oeste da Amazônia, é possível observar do céu enormes figuras geométricas formadas por valas escavadas no solo, os geoglifos. A partir dos anos 2000, com a ferramenta Google Earth, eles passaram a ser vistos por meio de imagens de satélite. “Foi possível identificar centenas dessas estruturas, principalmente no oeste da Amazônia”, conta o biólogo Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Inpe, orientador de Peripato e coordenador do artigo da Science.

Nos últimos 20 anos, escavações feitas por arqueólogos mostraram que as formas geométricas foram locais de importância religiosa (ver Pesquisa FAPESP nº 186). Peripato e seus colegas sabiam da existência desses vestígios de ocupação humana e supuseram que mais deles poderiam existir por baixo do dossel da floresta. “Testes anteriores indicavam a possibilidade de ocorrência dessas estruturas, mas nada preciso”, explica.

Eles então desenvolveram um método para retirar virtualmente a floresta e melhorar a detecção de aspectos do relevo – os dados de sensoriamento Lidar ainda não tinham resolução adequada para observações arqueológicas. O equipamento cobriu 5.315 quilômetros quadrados (km²) da Amazônia, o equivalente a 0,08% da floresta. “Deu certo, felizmente encontramos 24 estruturas até então desconhecidas”, celebra Peripato.

A tecnologia óptica Lidar permite enxergar camadas abaixo da floresta como se fosse uma radiografia que revela variações sutis de relevo, como os geoglifos

A tecnologia óptica Lidar permite enxergar camadas abaixo da floresta como se fosse uma radiografia que revela variações sutis de relevo, como os geoglifos. Imagem: Vinicius Peripato / Inpe

Animado com a descoberta, o pesquisador desenvolveu um modelo matemático para estimar quantos seriam e onde estariam outros geoglifos similares no território, levando em conta uma série de variáveis ainda desconhecidas. Ele cruzou os dados fornecidos pelo sensor Lidar com informações de outras 937 estruturas arqueológicas já conhecidas e, com esse modelo, calculou que existam pelo menos 10.272 estruturas pré-colombianas ainda não descobertas, podendo chegar até 23.648 na floresta inteira – um território de 6.700 km². A distribuição de 53 espécies de plantas domesticadas, utilizadas na alimentação, foi mapeada em inventários florestais prévios e poderá servir como indicação da existência das estruturas arqueológicas na imensidão da Amazônia.

“Foi um trabalho que, para ser realizado, exigiu uma equipe multidisciplinar e o uso de uma tecnologia de ponta”, avalia Aragão. A datação dos geoglifos ainda não descobertos foi estimada com base na literatura arqueológica já existente, mas só poderá ser confirmada quando houver um trabalho de escavação e coleta de material para análise.

“É um artigo importante que confirma algo que os arqueólogos dizem há anos: tinha muita gente vivendo na Amazônia no passado”, comenta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Esses povos viviam ali e também modificavam a floresta”, afirma. Os indícios de presença humana na região datam de cerca de 12 mil anos. Para uma parte dos especialistas, a Amazônia é um patrimônio biocultural que sofre influências tanto da própria natureza quanto da população que viveu e ainda vive por ali.

Neves diz que boa parte dos geoglifos ainda preservados está em terras de proteção ambiental, de ocupação indígena. “São os indígenas que preservam as estruturas em meio ao avanço do agronegócio e da destruição que está acontecendo na Amazônia”, opina. Para ele, a presença indígena é muito antiga e contribuiu para criar os biomas do país. “Não dá pra separar a história deles da história do Brasil.”

Com Lidar e modelo matemático, os pesquisadores calculam que existam entre 10 mil e 24 mil dessas estruturas na Amazônia

Com Lidar e modelo matemático, os pesquisadores calculam que existam entre 10 mil e 24 mil dessas estruturas na Amazônia. Imagem: Diego Lourenço Gurgel

A terra preta, encontrada em vários pontos da Amazônia, é outro indício da atividade agrícola registrada em torno dos geoglifos e que ajudou a dar forma aos biomas. Constituída por sobras de comida, como mandioca e peixe, cinzas e outros restos orgânicos da floresta, ela é rica em nutrientes como fósforo, cálcio, magnésio e nitrogênio, essenciais para o cultivo de alimentos.

“Quando a terra preta começou a ser estudada, foi uma revolução na arqueologia amazônica: trouxe evidências da existência de grandes populações naquele território porque, para formar esse material, é preciso que haja muita gente por bastante tempo no mesmo lugar”, afirma a arqueóloga britânica Jennifer Watling, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), coautora do artigo. Antes dessas pesquisas, o entendimento geral era de que a floresta amazônica não poderia abrigar uma população muito densa por falta de solo fértil, conta ela. “A terra preta mostra que é possível sustentar muitas pessoas sem destruir a floresta.”

A equipe coletou mais de 3.600 amostras de solo de quatro sítios arqueológicos, duas aldeias históricas, uma aldeia moderna no Alto do Xingu chamada Kuikuro II e algumas amostras do Alto Tapajós e da Serra dos Carajás. As análises revelaram que as amostras mais antigas têm mais de 5 mil anos.

A datação das terras pretas é uma das principais controvérsias dos últimos estudos feitos com esse tipo de solo. Em 2021, um artigo na revista Nature Communications questionou a origem antrópica das terras pretas. “Pela análise elemental, a data não casa com a presença do ser humano na Amazônia”, afirma o engenheiro-agrônomo e ambiental Rodrigo Studart Corrêa, especialista na recuperação de solos e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). De acordo com o estudo de Corrêa, o cultivo de terras na Amazônia data de menos de 4.500 anos, embora indícios arqueológicos apontem práticas de cultivo na região há 9 mil anos.

Para o grupo do engenheiro-agrônomo, a terra preta estudada por eles tem origem a partir de sedimentos da Cordilheira dos Andes. “Esse material é meandro de rio”, afirma Corrêa. Segundo ele, com base na análise de isótopos de estrôncio e outros elementos químicos, parte da composição das amostras não vem de matéria orgânica. “O grande mistério são fragmentos de cerâmica nessas terras, mas isso pode indicar que elas eram usadas para enterrar os mortos, talvez por serem mais fáceis de escavar”, especula.

Mulher Kuikuro deposita cinzas de fogueira em área onde desenvolve terra pretaMorgan Schmidt / UFSC

Mulher Kuikuro deposita cinzas de fogueira em área onde desenvolve terra pretaMorgan Schmidt / UFSC (imagem cedida pela Associação Indigena Kuikuro do Alto Xingu)

Schmidt e Watling, porém, consideram que seus resultados refutam essa interpretação de uma formação acidental da terra preta pelas comunidades locais. Os pesquisadores realizaram entrevistas com moradores, observaram o cotidiano das aldeias e viram os moradores depositarem resíduos de peixe e mandioca em lixeiras que chegavam a 60 centímetros de altura. “A maior parte da terra preta se forma em áreas de descarte, como se fosse uma compostagem”, conta Watling. “Eles misturam a matéria orgânica com cinza e carvão para formar uma terra fértil e espalhar nas áreas de cultivo.”

A terra preta é rica em carbono pirogênico, também chamado de carvão vegetal ou biochar, originado da queima de material orgânico e nutritivo para as plantas. O estudo publicado na Science Advances revelou concentrações de carbono duas vezes maiores nas áreas residenciais do que nas menos ocupadas. Isso acontece porque os indígenas utilizam cinzas de fogueiras domésticas para a produção de terra preta, segundo o geógrafo e arqueólogo Morgan Schmidt, do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Arqueologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que há mais de 20 anos estuda as práticas agrícolas de povos amazônicos.

Mais uma vantagem desse tipo de solo: a de sequestrar carbono da atmosfera e estocá-lo. As medições apontaram cerca de 4.500 toneladas desse elemento em um dos sítios arqueológicos, enquanto nas aldeias modernas há 110 toneladas. Isso mostra como, ao longo do tempo, o carbono persistiu e se acumulou. Mas as mudanças climáticas preocupam. “O carbono pode se decompor mais rápido devido ao aquecimento do solo”, explica Schmidt. “Vimos também que quando há desmatamento em uma área de terra preta e cultivo, perde-se o material orgânico do solo e o carbono volta para a atmosfera”, aponta.

A crise climática pode, igualmente, afetar os hábitos de consumo das populações indígenas que ainda hoje preparam terra preta em seus territórios. “Essa terra é criada por meio de uma forma muito particular de uso e manejo do espaço doméstico, que inclui o descarte de restos de alimentos tradicionais como a mandioca”, diz Watling. “Se elas pararem de plantar e de consumir tais alimentos, não sabemos se a terra preta ainda se formará do mesmo jeito.”

O site da revista Pesquisa FAPESP traz as reportagens completas sobre o uso de lasers para detectar geoglifos escondidos na Amazônia e sobre a origem da terra-preta amazônica.

Projetos
1.
 Transição para sustentabilidade e o nexo água-agricultura-energia: Explorando uma abordagem integradora com casos de estudo nos biomas Cerrado e Caatinga (nº 17/22269-2); Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável Jean Pierre Ometto (Inpe); Investimento R$ 3.414.563,06.
2. Modelagem decenal das emissões brutas de carbono derivadas de incêndios florestais na Amazônia (nº 18/14423-4); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Luciana Vanni Gatti (Inpe); Bolsista Henrique Luis Godinho Cassol; Investimento R$ 664.726,13.
3. Explorando o risco de expansão de savanas na América do Sul Tropical sob mudanças climáticas (nº 16/25086-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Bolsista Bernardo Monteiro Flores; Investimento R$ 287.363,70.

Artigos científicos
PERIPATO, V. et alMore than 10,000 pre-Columbian earthworks are still hidden throughout AmazoniaScience. On-line. 06 out. 2023.
LEVIS, C. et alHow People Domesticated Amazonian ForestsFrontiers in Ecology and Evolution. On-line. 17 jan. 2018.
SCHMIDT, M. J. et alIntentional creation of carbon-rich dark earth soils in the AmazonScience Advances. On-line. 20 set. 2023.
SILVA, L. C. R. et alA new hypothesis for the origin of Amazonian Dark Earths. Nature Communications. 4 jan. 2021.

 

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