Energia: a corrida pelas células solares de perovskita
Texto: Frances Jones | Revista Pesquisa FAPESP
Na frenética busca da ciência mundial por novos materiais para produzir energia limpa de forma mais barata e eficiente, uma estrutura cristalina tem se destacado como semicondutor e, segundo empresas do setor, está para virar a matéria-prima principal de uma nova geração de painéis solares fotovoltaicos, que transformam a luz do sol em energia elétrica. Produzidas em laboratório a partir de compostos químicos como brometo de chumbo, iodeto de chumbo e brometo de césio, os módulos de perovskita têm elevada capacidade de converter a energia dos fótons em eletricidade. A tentativa de entender e explicar suas propriedades pouco usuais teve início em 2009, quando um artigo científico publicado no Journal of the American Chemical Society demonstrou o seu uso, pela primeira vez, como componente de uma célula solar fotoeletroquímica. Desde então, o material tem sido objeto de estudo de inúmeros grupos de pesquisa ao redor do mundo.
O rápido avanço no conhecimento e no desenvolvimento das células de perovskita levou a uma corrida entre pesquisadores e startups para torná-las viáveis para uso comercial (ver Pesquisa FAPESP no 260). Em menos de 15 anos, o índice de eficiência na conversão da luz solar em energia elétrica pelas células solares – que podem ser flexíveis, leves e transparentes – passou de 3,8% aos atuais 26,1%. Esses resultados foram obtidos em dispositivos com pequena área. A eficiência de painéis solares comerciais à base de silício, que dominam o mercado, fica entre 15% e 20%.
Uma tecnologia mais recente, que sobrepõe uma célula solar de perovskita a outra de silício, chamada de célula solar tandem, registrou em laboratório eficiência de 33,7%. O recorde foi alcançado em junho de 2023 pela Universidade de Ciência e Tecnologia Rei Abdullah (Kaust), na Arábia Saudita. O Laboratório Nacional de Energia Renovável (NREL), nos Estados Unidos, mantém público e atualizado um quadro com os melhores números já atingidos e confirmados pelos diferentes centros de pesquisa do mundo ao longo dos últimos anos.
Empresas e startups chinesas, norte-americanas e europeias prometem iniciar a produção em escala de módulos solares com perovskita nos próximos meses. É o caso da britânica Oxford Photovoltaics, que foi uma spin-off da Universidade de Oxford e possui uma fábrica para produção de células do tipo tandem na Alemanha. Nos Estados Unidos, a Caelux, spin-off do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), está construindo uma planta para aumentar a sua produção de vidro fotovoltaico de perovskita, que poderá ser usado na construção de módulos solares a partir deste ano.
A empresa chinesa GCL-SI apresentou em 2023, em uma feira internacional de energia solar em Xangai, um módulo de perovskita de 320 watts com eficiência de 16%, informando que ele estava sendo fabricado em uma linha de produção-piloto. Em agosto, a também chinesa Microquanta anunciou que uma estação de energia com base em painéis de perovskita estava conectada à rede na cidade de Quzhou, com uma capacidade instalada de cerca de 260 quilowatts (kW).
No Brasil, quem está mais próximo de um modelo comercial de células de perovskita é a Oninn, instituto privado sem fins lucrativos sediado em Belo Horizonte que até 2022 se chamava CSEM Brasil (ver Pesquisa FAPESP no 247). Participam da iniciativa pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Centro de Inovação em Novas Energias (Cine), um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) criado em 2018 por FAPESP e Shell Brasil. Muito trabalho, contudo, ainda precisa ser feito até a fabricação de uma célula nacional técnica e economicamente viável.
Com a experiência no desenvolvimento de painéis solares com tecnologias baseadas em células fotovoltaicas orgânicas, a Oninn trabalha agora no escalonamento de suas células à base de perovskita. O objetivo é aumentar o tamanho desses dispositivos, que em laboratório têm dimensões da ordem de milímetros ou centímetros quadrados (cm2), para módulos maiores, de centenas de cm2, tamanho demandado pela indústria.
“Fizemos o primeiro protótipo de painel de perovskita com 800 cm2, mas nosso painel padrão, ainda em desenvolvimento, é um pouco menor, com 500 cm2”, diz o físico italiano Diego Bagnis, diretor científico da organização, que trabalha no Brasil há nove anos. Ele informa que o nível de maturidade tecnológica dos painéis da empresa é o 4, numa escala em que o nível 9 é o de produção estabelecida. “Estamos na fase de prototipagem, com as primeiras aplicações em condições reais para validar a tecnologia.” Bagnis almeja ter uma linha piloto de fabricação instalada até 2026 e colocar o produto no mercado em 2028, primeiro para pequenas aplicações.
A empresa não trabalha com células tandem. “Estamos nos concentrando no que é chamado de single junction, ou seja, células com apenas uma camada de perovskita”, afirma Bagnis. “Na Europa, até faz sentido trabalhar com a tandem, combinando perovskita e silício, pois lá a tecnologia do silício está estabelecida e há produção local dessas células. No Brasil, isso não acontece.” O material dos painéis solares usados no país é importado e os módulos à base de silício são apenas montados localmente.
Apesar dos avanços dos últimos anos e das promessas de lançamento de modelos comerciais em breve, pesquisadores brasileiros ouvidos pela reportagem afirmam que há muito a ser entendido sobre os fundamentos desse material emergente, principalmente sobre a estabilidade das células ‒ a capacidade de se manterem íntegras por um longo período ‒, e como transpor a eficiência energética obtida em pequena escala, em módulos de laboratório, para uma escala maior.
“Ainda existem desafios científicos e tecnológicos que precisam de investimento, tempo e pessoal qualificado para serem superados”, diz o físico Carlos Frederico de Oliveira Graeff, da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru, que trabalha com células solares de perovskita e é um dos parceiros da Oninn.
“O silício, do ponto de vista da física e da engenharia, é um material relativamente simples, com um arranjo cristalino conhecido, enquanto a perovskita tem grande complexidade física e química. É um material formado em geral por uma parte orgânica e outra inorgânica e composto de diversos elementos, que apresenta uma intensa mobilidade iônica”, afirma o especialista. Um dos projetos mais recentes de Graeff, apoiado pela FAPESP, tem como foco investigar a estabilidade dessas células solares.
O físico Gustavo Dalpian, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), destaca que uma série de propriedades fundamentais da estrutura cristalina do material ainda não é bem compreendida. “É bastante diferente do que se vê em outros materiais. No silício cristalino, por exemplo, os átomos tendem a ficar em posições bem definidas, mas nas perovskitas eles se movem muito. Acredita-se que esse é um dos motivos para que sejam tão instáveis.”
A instabilidade da perovskita, que faz com que ela se degrade muito mais rápido que o silício, é um dos grandes desafios a ser superado. O módulo de silício pode durar até 30 anos sem grandes perdas na eficiência, enquanto as células do novo material chegam com muito esforço a pouco mais de um ano. Inicialmente elas se degradavam em horas ou dias. Umidade, calor, oxigênio e mesmo a luz solar são capazes de causar dano.
“Uma vez que tenhamos entendido as propriedades fundamentais da estrutura desses materiais e seus defeitos, poderemos elaborar ou pensar em formas de evitar que eles se degradem tão rapidamente como ocorre hoje”, afirma Dalpian. O grupo de pesquisa que ele lidera é especializado em simulação computacional de materiais e usa ferramentas de big data e de aprendizado de máquina nesses estudos.
Recentemente o pesquisador esteve na Colômbia no âmbito de um projeto Sprint, da FAPESP, de onde falou com Pesquisa FAPESP. “Estamos discutindo novos projetos envolvendo perovskitas e o pessoal de duas universidades de Medellín deverá fazer parte dessa iniciativa”, conta o pesquisador, que também tem colaborações com um grupo experimental da Universidade Federal do ABC (UFABC), instituição na qual lecionou até o início de 2023, quando se tornou professor titular na USP.
Luz síncrotron e a perovskita
Na investigação aprofundada do material, uma equipe do Cine foi pioneira ao observá-lo com ajuda de uma das fontes de luz síncrotron do Sirius, operada pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. O Cine é formado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da USP e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).
“A pesquisa sobre o uso de perovskita na área de energia solar fotovoltaica foi a que mais cresceu no mundo e fazer experimentos com a luz síncrotron permitiu nos posicionarmos em um meio supercompetitivo”, conta a química Ana Flávia Nogueira, diretora do Cine e professora do Instituto de Química da Unicamp. Desde 1996 ela trabalha com materiais fotovoltaicos emergentes e, em 2015, passou a investigar a classe das perovskitas.
A infraestrutura científica do CNPEM permitiu que os pesquisadores fizessem um mapeamento do material em escala nanométrica. “Levamos o equipamento que produz o filme de perovskita – um disco rotatório chamado de spin-coater, parecido com o utilizado para fazer CD – para a linha de raios X”, conta Nogueira. Foi a primeira vez que isso foi feito. Mas qual é a vantagem desse experimento, chamado in situ? “Enquanto o filme de perovskita se formava, os raios X atingiam a amostra e forneciam informações importantes sobre a estrutura e sobre como o filme se cristalizava ao longo das etapas”, conta Nogueira.
Esse e outros ensaios para analisar a degradação do material também por técnicas in situ no Sirius deram grande visibilidade aos pesquisadores do Cine – tanto que foram convidados a escrever um artigo de revisão sobre o assunto para o periódico científico Chemical Reviews. O texto com 77 páginas foi publicado no início de 2023. “O convite para elaborar um artigo de revisão para uma revista de altíssimo impacto coroa os trabalhos que fizemos nos últimos anos”, destaca Nogueira. Além de investigar a perovskita para uso em células solares, o grupo também estuda o emprego do material em dispositivos emissores de luz, como LED e lasers.
Para entender o funcionamento
No Sirius, os experimentos agora têm foco em entender o funcionamento da célula solar de perovskita – e não apenas no material em si. São os chamados experimentos operando. Um dos desafios desse tipo de análise é que a própria radiação síncrotron pode causar transformações indesejáveis no material.
“Estamos investigando os efeitos da dose de radiação necessária para estudar esses dispositivos e como mitigá-los. Já criamos dispositivos que permitem simular as condições de operação da célula solar fotovoltaica e temos os primeiros resultados”, ressalta o físico Helio Cesar Nogueira Tolentino, chefe da Divisão de Matéria Heterogênea e Hierárquica do LNLS. “Queremos achar as condições de trabalho ideais para obter a informação, usando a luz síncrotron e sem degradar o material fotovoltaico. Ou degradando, mas de maneira controlada.”
Tolentino explica que a estrutura cristalina da perovskita se assemelha ao formato de um cubo, podendo variar em razão do método de preparação ou das rotas de síntese adotadas. No primeiro experimento operando, os pesquisadores observaram o efeito da luz solar sobre a estrutura atômica do material. “Ainda não temos uma interpretação fechada, mas há evidências de que a variação da iluminação altera a estrutura do material.”
Entre possíveis soluções apresentadas pelos pesquisadores brasileiros para corrigir as características indesejáveis do material para as finalidades pretendidas, há aditivos, novas moléculas, diferenças no processo de produção do filme e até mesmo a aplicação de uma fina camada de um filme de perovskita bidimensional (2D) em cima de uma camada tridimensional (3D). Mas a instabilidade apresentada pelo material representa apenas parte dos desafios tecnológicos. Manter a eficiência energética conquistada em laboratório nas pequenas células, numa escala maior, também é um quebra-cabeça para os cientistas.
“Muitas vezes, ao tentar transpor a escala das células, o filme não fica homogêneo”, explica Nogueira, da Unicamp. “O processo de cristalização que ocorre quando a perovskita está se formando é diferente ao de outros materiais usados no setor fotovoltaico.”
Segundo Graeff, os pesquisadores buscam encontrar formulações e processos que tornem a tecnologia viável do ponto de vista econômico. “Precisamos de processos produtivos robustos, que possam ser utilizados em alta escala. Nesse ínterim, estamos aprendendo muita física e química básica. Esses são materiais novos e complexos na área de dispositivos eletrônicos”, diz o pesquisador da Unesp de Bauru. “A eletrônica dos painéis atuais foi toda baseada em um material muito simples e estável que é o silício. Agora temos um material formado por diferentes elementos químicos e estrutura complexa.”
A pesquisa na área traz bons exemplos de uma fecunda colaboração entre cientistas teóricos e experimentais. Com as simulações feitas em computador, os teóricos são capazes de projetar estruturas jamais feitas em laboratório ou de economizar tempo e dinheiro na seleção dos elementos a serem testados nos experimentos.
“Analisamos diferentes materiais e tentamos inferir ou aprender sobre as suas propriedades”, diz Dalpian, que contabiliza ao menos cinco artigos publicados com o grupo experimental da UFABC. “Há uma colaboração muito produtiva. Normalmente, são os pesquisadores experimentais que nos fazem pedidos, mas, nesse caso, é melhor do que isso, porque eles nos ouvem também. Uma vez dissemos que, se pusessem ferro na perovskita, esse material traria propriedades magnéticas interessantes. Eles fizeram isso e o resultado gerou um artigo interessante”, conta Dalpian.
No Cine, teóricos e experimentais trabalham juntos em várias frentes. Uma delas, é a busca de alternativas que substituam o chumbo (elemento tóxico) na composição da perovskita. “Há o interesse de reduzir ou eliminar totalmente a quantidade de chumbo presente nessas estruturas”, afirma o físico Juarez L. F. Da Silva, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da USP, e coordenador do programa de ciência computacional de materiais do Cine.
“A simulação computacional permite o estudo de grande quantidade de materiais para substituir o elemento nas perovskitas de baixa dimensionalidade – como estanho, germânio ou combinações de duas espécies químicas”, explica Da Silva. Há um conjunto de parâmetros dos quais o material tem que estar o mais próximo possível. “Usamos as informações dos experimentais para verificar quais materiais têm esse potencial.”
Outra frente, liderada pelos experimentais do Cine, investiga a interação de moléculas com as superfícies das perovskitas. As simulações permitem observar que mecanismos podem contribuir para o processo que degrada o dispositivo, detalha Da Silva. “Na célula solar, o fio metálico usado como contato para levar a corrente elétrica interage com a perovskita gerando um processo de difusão de espécies químicas de um lado para outro. Dependendo da situação, elas podem desestabilizar a estrutura do dispositivo.”
De acordo com Dalpian, haverá espaço em várias frentes diferentes para as células solares de perovskita, desde que ocorra uma mudança de paradigma nessa área. “Há uma visão de que a célula solar deve durar de 20 a 25 anos. Mas não precisa ser assim. Se a célula for tão mais barata, custando, por exemplo, US$ 0,40, ela pode ser trocada quando perder a eficiência, como se faz hoje com as lâmpadas”, diz Dalpian. “Nesse caso, é preciso que haja um ecossistema para cuidar da reciclagem dos painéis, minimizando um impacto ambiental associado à sua produção.” O objetivo da pesquisa com células de perovskita, destaca o pesquisador, não é substituir por completo os módulos de silício, mas incorporar na indústria de energia solar outro material com propriedades e características vantajosas.
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